Do tempero à medicina culinária: horta na USP vira referência em agricultura urbana

Ao olhar para a laje ao lado de sua sala na Faculdade de Medicina da USP, na Avenida Doutor Arnaldo, a professora Thaís Mauad, do Departamento de Patologia, enxergou mais do que concreto. Foi assim que nasceu uma pequena horta experimental, ideia simples que se transformaria, ao longo dos anos, em um dos espaços de agricultura urbana mais diversos e ativos de São Paulo. Leia também: Horta em shopping de SP produz 40 mil hortaliças por ano para funcionários Como fazer uma horta no quintal? Veja o que plantar e outras dicas Horta “Na época eu já participava de alguns movimentos de agricultura urbana e, com o auxílio de voluntários, começamos o cultivo de alguns temperos em sete pequenos canteiros”, conta a médica que coordena o espaço. Doze anos depois, a horta da Faculdade de Medicina de São Paulo (FMUSP) se tornou famosa por abrigar um dos espaços de agricultura urbana mais diversos e ativos da capital paulista, que contabiliza um número cada vez maior de viveiros, hortas e outros espaços de cultivo orgânico de alimentos. Segundo dados do Sampa+rural, portal da prefeitura que reúne iniciativas de agricultura, existem atualmente 1.970 hortas comunitárias na capital dedicadas à produção em PANCs (Plantas Alimentícias não Convencionais), ervas medicinais, temperos, frutas e hortaliças. É neste cenário que se destaca a horta da FMUSP, com sua exuberante área de 400 metros quadrados e mais de 300 espécies de hortaliças cultivadas. “Desde o início, conduzimos projetos com alunos de extensão e bolsistas, que nos ajudaram bastante, inclusive a criar algumas oficinas”, conta Thaís. Tais iniciativas converteram a horta em um laboratório vivo de biodiversidade, educação ambiental e extensão universitária. Nela são realizados diversos cursos sobre cultivo em pequenos espaços, uso de ervas, reconhecimento de PANCs, biodiversidade alimentar e dezenas de projetos de extensão relacionados à agricultura urbana. Espaço serve como local de pesquisa, laboratório educativo, ponto de observação de fauna, centro de oficinas, entre outros Thiago de Jesus Disciplina inédita A horta contribuiu inclusive para a criação de uma disciplina inédita no curso de graduação em medicina. A médica explica que, embora conteúdos sobre alimentação não façam parte do repertório da faculdade de medicina, é de conhecimento dos médicos que alimentos saudáveis ajudam na prevenção e no manejo de doenças. “Com isso em mente, e pensando em aproveitar tudo o que temos na horta, criamos há dois anos o primeiro curso de medicina culinária do Brasil ”, conta. A disciplina, optativa da graduação de medicina, é ministrada uma vez por ano, por quatro médicos que, literalmente, colocam a mão massa, cozinhando para transmitir aos alunos os ideais da alimentação saudável. O curso aborda temas como o impacto dos alimentos ultraprocessados, uso de temperos naturais, biodiversidade alimentar e preparo culinário básico. Ervas e plantas da horta são usadas nas aulas, aproximando os futuros médicos de práticas alimentares que impactam prevenção e no manejo de doenças. “São 15 vagas, que é o número de pessoas de cabe na cozinha, mas estamos com uma lista de espera de 100 pessoas”, conta Thaís. Trabalho voluntário Desde que foi implantada, a horta sempre dependeu de trabalho voluntário. Não há funcionários exclusivos, e a manutenção do espaço é realizada por pessoas que dedicam horas semanais às regas, podas, colheitas e demais tratos culturais. “A horta demanda muito cuidado”, diz Thaís, que já passou alguns finais de ano indo à faculdade para regar as plantas. Dirley Ferreira de Oliveira é uma das voluntárias mais antigas do projeto. Há 11 anos, três vezes na semana, ela atravessa a cidade, saindo de Itapecerica da Serra para realizar os tratos culturais nos canteiros de azedinha, alecrim, chicha, espinafre, peixinho, oliveira, manjericão, figo, babosa, guaco, entre outras centenas de hortaliças e PANCs. “Eu adoro vir pra cá. Rego as plantas, colho, seco as ervas e preparo temperos que são distribuídos nas feiras acontecem aqui a cada três meses”, conta Dirley. Ao longo de pouco mais de uma década, a horta se desdobrou em usos diversos: local de pesquisa, laboratório educativo, ponto de observação de fauna, centro de oficinas, espaço de convivência e até território para experimentos de estudantes de engenharia, que desenvolvem hotéis de insetos e sistemas alternativos de cultivo. “Recentemente cedemos um espaço para a Faculdade de Farmácia para o cultivo e estudo de plantas medicinais”, conta. Diversidade de insetos Thais revela que a diversidade da horta extrapolou o reino vegetal. “Catalogamos mais de 400 espécies de insetos, incluindo borboletas raras”, destaca. Os registros foram feitos pelo bibliotecário, Renato Sobral, que, desde 2019, se dedica, nos intervalos, a fotografar a fauna local. “Nosso objetivo é o uso pedagógico da horta, cultivando alimentos sustentáveis e mostrando que é possível ter plantações na cidade e acessibilidade a alimentos frescos e livres de agrotóxicos”, explica. Os alimentos produzidos na horta são doados para voluntários e instituições como o Hospital das Clínicas e o Instituto da Criança, que utilizam ervas frescas e desidratadas no preparo de dietas hospitalares, além de organizações que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade, como o Sefras, ação social franciscana, que acolhe refugiados.

